sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Quando o poeta dá adeus!

O disco "A Tempestade ou Livro dos Dias" foi um trabalho cercado de mistérios. Num primeiro momento a banda finalmente realizaria seu velho desejo de lançar um álbum duplo de inéditas, sonho acalentado desde o "Dois", de 1986. Depois de dois trabalhos solos, Renato estava pronto e, dentro do possível, com muita gana em gravar um disco novinho com a Legião Urbana. Ele sentia saudades... 

Renato também tinha produzido muito material, daí a possibilidade de um disco duplo. Gênios deste quilate, quando percebem que estão próximos do adeus, desenvolvem uma capacidade ainda maior de criação. E Renato escrevia como nunca.

A banda entrou em estúdio em janeiro de 1996, e Renato já dava sinais de cansaço. Por conta disso, Renato gravou quase todo o disco apenas com a chamada voz guia. Desde o já citado "Dois", de exatos 10 anos, aquele foi o primeiro álbum gravado pela banda sem a participação do produtor Mayrton Bahia. Assim, a produção coube ao guitarrista Dado Villa-Lobos, com importante colaboração do músico Carlos Trilha.

Um dos maiores temores de Renato Russo era soar falso a seus fãs. Nesse sentido, escolher a canção “A Via Láctea” como música de trabalho era por demais revelador. Mas ainda tinha mais: ao abrir o encarte do disco, antes de chegarmos as letras, havia uma citação de Oswald de Andrade “O Brasil é uma república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”. Mais óbvio impossível. Renato era assim, entregava-se de corpo e alma! Um enorme respeito para com o seu público!

O disco abre com “Natália” e seu rock básico que, instintivamente, me remeteu ao álbum “Monster”, do grupo R.E.M, de 1994, aliás, uma das minhas bandas de cabeceira. Obaaa! Um disco de rock! Baixo, bateria e guitarra. Sua letra ácida antecipava os atuais tempos obscuros, onde “a mentira é salvação”. Na mesma pegada, “Dezesseis” contava a saga de João Roberto, um garoto adolescente de classe média que não supera uma desilusão amorosa! Aliás, as citações de Janis Joplin, Led Zeppelin, dos Beatles e dos Rolling Stones são incríveis. Certamente muita gente os conheceu por conta desta referência. Já a canção “L´Aventura”, homenagem ao filme homônimo de 1960 de Michelangelo Antonini, trata de amor à maneira Renato Russo. Alguém que marcou demais, se foi, faz falta, mas vida que segue. Tudo muito bem conduzido pelo diálogo entre violões e guitarras de Dado e a batida exata da batera de Marcelo Bonfá.  “Música de Trabalho”, num tom mais lisérgico e um teclado para amenizar, segue com distorções de guitarras e uma bateria rhytthm track, tipo “Perfeição”.

Claro que o clima mais marcante do trabalho está no componente emocional estampado na já citada “A Via Láctea”. Uma canção melancólica e angustiante que desnuda seu autor, a quem a vida parece já ter cansado além da conta. Frases como “Hoje a tristeza não é passageira. Hoje fiquei com febre a tarde inteira. E quando chegar a noite. Cada estrela parecerá uma lágrima” ou “Quando tudo está perdido, não quero mais ser quem eu sou. Mas não me diga isso. Não me dê atenção. E obrigado por pensar em mim”, mostram o quanto era importante, pra ele, ser sincero. Claro que o bom e velho Renato Russo não deixaria de lado suas desilusões amorosas. E elas foram muitas. Assim, ele desfila “Longe do Meu Lado”, “Música Ambiente”, “Mil Pedaços” e “Quando Você Voltar”. Uma poesia melhor que a outra e não necessariamente nessa ordem. Renato não esconde que sempre quis o perigo, mas agora ele estava sangrando sozinho. O poeta estava realmente afiado. E como não se emocionar ao ouvi-lo se despedindo dos pais, do filho e dos amigos na bela “Esperando Por Mim”, já num tom mais alto, com violões e guitarras harmoniosamente aliadas a uma bateria como um mantra. Mais uma letra de arrepiar e, claro, de chorar!

Renato não se esqueceu nem das coisas do dia a dia, como em “Leila”, que retrata uma mulher genuinamente brasileira, guerreira, vítima de algum macho fujão, mas que a sociedade adora julgá-la. E olha que em 1996 não se falava no empoderamento feminino. Aliás, Renato tinha uma sensibilidade absurda, senão, como explicar uma composição como “1º de Julho”, feito à amiga Cassia Eller quando ela estava grávida? Faz todo sentido do mundo ter entrado no repertório deste álbum. Este disco também traz “Soul Parsifal”, uma parceria com Marisa Monte. 

Para fechar o disco, “O Livro dos Dias” iniciada por uma bateria marcial, somado àquele teclado característico da Legião e arranjos de cordas, funcionando com uma suíte. Já a letra... bem!!! Ah a letra! O que concluir dos versos “Meu coração não quer deixar meu corpo descansar”? É meus amigos, o poeta cansou. Como ele mesmo diz em “Longe do Meu Lado”, “Não estou mais pronto para lágrimas”. Eu queria não estar Renato, mas escrever sobre esse álbum torna impossível segurá-las. “Vem de repente um anjo triste perto de mim”!!!

Quanto ao título do álbum, “A Tempestade” era o nome preferido de Renato, seguramente por ser a última peça escrita por Shakespeare. Já “O Livro dos Dias” era o preferido de Dado e Bonfá. Então, juntou-se os dois nomes, no entanto a canção “A Tempestade” ficou de fora. Ela foi lançada somente no álbum seguinte, “Uma Outra Estação”, de 1997. Aliás, pensando na real condição de Renato Russo, e que somente a banda e pessoas muito próximas a ele sabiam, a decisão de não lançar todo o material produzido de uma só vez foi a mais acertada. Então, o que ficou de fora, como a citada “A Tempestade”, pode ser lançado de forma póstuma.

“A Tempestade ou Livro dos Dias” foi a saída de cena de Renato Russo. Um sujeito que não veio ao mundo a passeio. Marcou gerações contemporânea e às futuras. Seu legado permanece tão rico e atual quanto no tempo em que foram escritas. Renato nos faz falta, muita falta, é uma ferida jamais cicatrizada. Só não dá Renato, com todo respeito, pra atender um de seus últimos pedidos, aquele da canção “Música Ambiente”, “E quando eu for embora. Não, não chore por mim”!!!

Silvano Caiçara


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8 comentários:

  1. É ainda para mim, o mais difícil álbum para ouvir. Toda vez que ouço, volto no túnel do tempo.Mas é muito bom saber que neste túnel, Renato e a Legião Urbana transitam e continuarão eternamente transitando em espiral, exponencialmente.

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    1. É All... "É saudade então, e mais uma vez...". Muito Obrigado!

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  2. Comecei a ouvir Legião dos últimos para os primeiros discos, foi uma ordem inversa da discografia. A minha percepção da banda era algo profundo e muito séria por conta desse disco, até que fui chegando em outros. Não tinha noção exatamente do teor que a banda tava transmitindo.

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    1. Salve meu amigo Jonh... O melhor da Legião era essa sinceridade, daí essa conexão tão intensa entre público e banda. O Renato tinha uma aura incrível!

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  3. Silvano, faço mais um elogio ao seu fantástico trabalho literário. A verdade é que seus textos criam contextos, o que possibilita conversar sobre Música, sobre produção artística, sobre as pessoas, sobre Política, e, o que enriquece e valoriza, para qualquer leitor, seja qual for a linha ideológica. É "base de lançamento". Deles, tiramos conclusões. Um abraço!

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    1. Oh Carlão, muito obrigado pelas palavras. Escrever sobre este álbum é desafiador, uma vez que ele foi muito o impactante! Forte abraço!

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  4. Cliquei achando que estava prestes a ver o vídeo, mas fiquei surpreso com esse maravilhoso texto. Obrigado Silvano sempre trazendo o melhor da música . .
    Legião sempre foi referência em minha juventude e com certeza até hoje. A tempestade é um disco maravilhoso.
    Obrigado mais uma vez amigo Silvano Caiçara..

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    1. Grande Alex... Obrigado pelas palavras. Sim, trata-se de um discaço e lembrando que só a arte salva. Abraço!

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