terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Ainda Estou Aqui

Assisti a "Ainda Estou Aqui" na noite de 25 de dezembro. Nada mais emblemático, já que a data simboliza, ou ao menos deveria significar, a empatia, o respeito e, sobretudo, o amor ao próximo. Ensinamentos estes, absolutamente ignorados pela truculência e a covardia praticada pelo regime de exceção consolidado no Brasil, com o Golpe de Estado de 1964. A trama, baseada na obra literária de Marcelo Rubens Paiva, homenageia a mãe do autor, Eunice Paiva, que de uma hora pra outra se viu sozinha com seus filhos, uma vez que seu marido, Rubens Paiva, simplesmente foi levado de sua casa pra nunca mais voltar. E mais, num primeiro momento o Estado negou estar com a sua custódia.

Paiva ficou marcado por seu duro discurso proferido ao vivo na Rádio Nacional, um dia após o Golpe ser perpetrado, onde ele defendia o presidente deposto João Goulart e incitava a população a se manifestar pacificamente contra o regime. O então deputado compactuava com as reformas de base promovidas por Jango, o que lhe custou o mandato de deputado federal dias depois. Por consequência, Paiva se exilou na Iugoslávia e França.

De volta ao Brasil, Paiva retomou sua carreira de engenheiro e, posteriormente, chegou a dirigir o jornal Última Hora. Como nunca deixou a política de lado, mantinha ligações com exilados que viviam no Chile e daí veio a suspeita dos militares de que ele poderia ser a chave para capturar Lamarca. A covardia contra Rubens Paiva fica ainda mais evidente quando é sabido que ele jamais participou ou integrou qualquer um dos grupos armados que lutaram contra o regime.   

Voltando ao filme, tudo caminhava bem até o dia 20 de janeiro de 1971, dia de São Sebastião, quando seis 'homens' da Aeronáutica, com metralhadoras, invadiram a casa da família Paiva e levaram Rubens para um interrogatório, porém sem maiores detalhes de onde seria tal depoimento e sobre o que o interrogariam. 

Não bastasse a barbárie da prisão, oficiais mantiveram a família como reféns em sua própria casa, chegando ao absurdo de também levar Eunice e a filha Eliana para interrogatório, no dia seguinte. Já no DOI-CODI, elas foram separadas. Sem a menor noção do paradeiro de Rubens e de como estava sua filha, Eunice foi submetida a tortura psicológica pesada, com o objetivo de reconhecer 'outros subversivos' e trancafiada em uma cela fétida. 

Quando libertada, Eunice mergulha em um drama ainda maior que é saber sobre seu marido e manter sua família sem ter acesso às economias de Rubens. Um dos momentos mais emocionantes do filme é quando Eunice leva as crianças a tomarem sorvete e ao ver uma família, digamos completa, com a presença do pai, ali 'cai a ficha' de que ela nunca mais contaria com Rubens. É de cortar o coração...

Eunice vende a casa e um terreno no Rio pra votarem a morar em São Paulo e é a partir daí que ela começa sua luta pelos Direitos Humanos e também para esclarecer o que de fato aconteceu com seu esposo. Somente em 1996, Eunice recebeu a Certidão de Óbito de Rubens Paiva, após ser sancionada a Lei dos Desaparecidos, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. A cena aqui, inclusive, é um recado direto aos acontecimentos de 8 de janeiro, quando uma jornalista pergunta algo do tipo "Não temos preocupações mais importantes para o país do que revirar essas histórias?", a qual Eunice responde "Isso é importante sim, pra que essas histórias não voltem a se repetir". Esse é o ponto. Justamente a não punição de assassinos covardes e os militares de alta patente é que fizeram um reles e medíocre capitão do exército achar que podia se perpetuar no poder, mesmo 40 anos após o fim do acinte que foi o Golpe de Estado de 1964.   

E o que falar da atuação de Fernanda Torres, especialmente, depois do prêmio de Melhor  Atriz no Globo de Ouro? Simplesmente soberba. Ela mergulha na personagem de forma tão intensa que sentimos profundamente suas dores e ali pelas tantas não dá mais para assistir ao filme sem os olhos marejados.

Um fato que me ocorreu somente assistindo ao filme é a condição de Marcelo Rubens Paiva como tetraplégico. Aliás, preciso ressaltar que ele é um dos meus escritores favoritos e Malu de Bicicleta, meu livro preferido. Feito esse a parte... Não fosse seu pai retirado de forma tão aviltante do convívio de sua família, eles não teriam retornado a São Paulo e, provavelmente, Marcelo não teria estudado em Campinas, onde sofreu o acidente, ao mergulhar num lago e batido com a cabeça, que o colocou em sua situação. 

"Ainda Estou Aqui" é muito necessário e chegou com um timing absurdo de percepção do atual momento do país. Como Eunice respondeu à jornalista, estes fatos precisam ser lembrados para que nunca mais se repitam. Sendo assim, pra todos os criminosos que atentam contra o Estado Democrático de Direito, punição dura e exemplar.

Sem Anistia!!!

PS: excelente trilha sonora. 


Família Paiva


6 comentários:

  1. O filme, definitivamente não é mais um. Que bom termos na arte uma esperança de que este país também volte a enxergar e sorrir.

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    1. Mais um belíssimo filme do nosso cinema, que tem nos brindado, de uns tempos a esta parte, com grandes obras. Viva o Brasil!
      Obrigado pelo carinho de sempre All.

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  2. Marcelo Paiva desnudou o drama vivido por sua família, sobretudo sua mãe, para que uma nação inteira soubesse o que foi aquele período. Há quem diga que é drama, quero acreditar que se referem ao estilo da obra.
    Tomar conhecimento desses pormenores que acontecem e só uma família no seio de seu lar podem contar, é um privilégio no sentido amplo do termo.
    Que bom que agora o mundo inteiro vai saber o que foi o período da ditadura militar no Brasil.
    Mesmo que uma minoria, ainda que numerosa, discorde que ela existiu, é sempre bom deixar claro que "esses fatos precisam ser lembrados para que não se repitam".
    Parabéns pelo texto, Silvano.

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    1. Oh Sandra, muito obrigado. O filme nos traz uma pequena amostra das entranhas sórdidas da ditadura militar. Deveria ser passado em sala de aula pra que as futuras gerações não comentam o absurdo de reivindicar a volta de algo tão ordinário!

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  3. Excelente texto. Contextualizou bem a história da família e foi bem certeiro no paralelo com o 8 de janeiro. Parabéns.

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    1. Muito obrigado Jailson. É muito importante que ele seja tão repercutido por estes tempos.
      DITADURA NUNCA MAIS!

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